
O bairro Mathias Velho, o mais populoso de Canoas, agora se parece com um cenário de guerra – na descrição dos próprios moradores. A região é uma das mais afetadas pela enchente do mês passado. Nas ruas com intermináveis pilhas de entulho, não se via quase ninguém circulando nesta quinta-feira (13), quando o Sul21 esteve no local: quem voltou para casa se concentra na limpeza e na busca por objetos que podem ser recuperados.
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Essa é a rotina de Francisco Silveira, 68 anos, há cerca de dez dias. A casa dele fica na rua Guaporé, perto da estação de trem que leva o nome do bairro onde ele se criou. “Tinha que ver a lama que tinha aqui. Aquela lama preta, fedida, podre. Quanto mais eu limpo, mais sujeira aparece. É alta a casa, mas a água bateu 1,90”, relata.
Quando posou para a foto no pátio de casa, Francisco disse: “Eu e o meu reino. Ou o que sobrou”. Na frente do imóvel, os objetos que faziam dele um lar agora são uma pilha enlameada. Isso preocupa o dono, que se diz apavorado com a previsão de chuva para os próximos dias, já que os resíduos vão impedir a água de escoar.

Enquanto o morador relatava sua preocupação, a Prefeitura anunciava em coletiva de imprensa a contratação de 1,2 mil auxiliares de limpeza e o lançamento de um edital para reforçar o número de caminhões e máquinas da Operação Limpeza. Serão mais 240 caminhões, 120 retroescavadeiras e 30 caminhões garra. Ao Sul21, a Prefeitura informou que a dispensa de licitação foi publicada na quarta-feira (12). Agora, o processo está em fase de análise das propostas financeiras. A etapa seguinte é o envio da documentação das empresas, cuja análise ocorre pelas equipes da prefeitura.
O Escritório de Resiliência Climática de Canoas prevê chuvas com volumes de 50 a 70 milímetros no domingo (16). “Essa quantidade de chuva, em um único dia, representa cerca de dois terços da média histórica de junho”, explicou o prefeito Jairo Jorge (PSD) ao orientar que a população evite áreas da cidade que costumam alagar. O gestor também fez um apelo aos moradores para que não deixem resíduos próximos às bocas de lobo para não resultar em obstruções.
Fazia sol em Canoas quando Francisco conversou com a reportagem, tornando difícil imaginar um novo período úmido no lugar. Mas também foi difícil acreditar que a água tomaria tudo no início de maio, segundo o morador. “O povo aqui, na verdade, ficou meio hipnotizado, não acreditando no que estava vindo. Porque não avisaram a gente. Se tivessem avisado com umas 10h de antecedência, a gente ia salvar muita coisa. Foi uma guerra invisível, a gente não viu o inimigo chegando, te molhando”.
O idoso era policial civil e se aposentou em 2011. “Agora que eu achava que ia ter paz, vêm essas coisas”, desabafa. Mesmo assim, Francisco quer continuar morando na Mathias: “vou ficar, mas eu espero que alguém faça alguma coisa para poder amenizar [os danos das chuvas], e é possível fazer. Dragar esses rios, fazer paredão… dinheiro tem. A gente merece”.
Bárbara Pinheiro é vizinha de Francisco e moradora do bairro há 27 anos. Diz nunca ter visto nada parecido com a enchente. Ela está desde o dia 3 de maio no apartamento de um amigo; já limpou a casa onde mora, mas não consegue voltar porque o mau cheiro é muito forte. Também relata que os moradores não foram alertados para evacuar o bairro: “eu vi algum carro de som lá pra baixo, onde a minha sobrinha mora. Mas aqui, na entrada da Mathias, nenhum”.
Em 3 de maio, a Prefeitura de Canoas publicou no Instagram um vídeo do prefeito Jairo Jorge orientando que moradores da parte de baixo do bairro Mathias Velho, perto da casa de bombas número 6, deixassem o local. A estrutura fica próxima ao dique do bairro, que rompeu com a força da água, e distante 6 km da rua onde moram Francisco e Bárbara. No dia seguinte, o alagamento já atingia o final da Av. Rio Grande do Sul, na entrada do bairro, cujo viaduto foi usado pelos moradores que saíam de casa às pressas.


O entorno do viaduto agora está seco – o Sul21 recriou as imagens que rodaram o país no mês passado. Trata-se de uma área comercial do bairro Mathias Velho, onde mais pessoas são vistas circulando. Mesmo assim, o movimento decaiu na loja de aviamentos de Romilda Vicente, que agora tenta reorganizar o comércio ao lado da colega Rosane de Miranda.
O carro-chefe das vendas agora são panos de limpeza e o tecido de soft, usado para confecção de cobertores a serem doados. A loja, que funciona no mesmo ponto há 13 anos, ficou fechada do início da enchente até o dia 20 de maio. Romilda conta que conseguiu erguer grande parte do estoque mas que muitas miudezas, como agulhas, estragaram. Ela quer mudar o comércio de local.
“Vinham clientes de toda a cidade, de Nova Santa Rita, de Porto Alegre. Éramos a loja mais sortida. Ainda vamos ser”, afirma a dona.

Na estação Mathias Velho, Ana Carla esperava o trem no sentido Novo Hamburgo. Mas ela não estava saindo da cidade, e sim indo para casa no bairro Rio Branco, onde mora há sete anos. A residência ficou com água até o teto e a moradora está provisoriamente na casa da filha, em São Leopoldo.
“Nós conseguimos entrar em casa este fim de semana para tirar os móveis e estamos na limpeza ainda, porque tinha muito barro. A água só baixou depois que eles botaram as bombas a funcionar”, conta Ana. “No bairro, muita gente não saiu de casa porque ficou esperando que nos dessem sinal de evacuação. Quando realmente deu a cheia, não teve como sair, a gente teve que esperar ajuda para sair de barco”.
Por enquanto, Ana não pensa em se mudar do local. “Vou precisar continuar morando lá, arrumar o que der. Não tem como sair, ainda mais com as perdas que a gente teve”.
Localizado na rua Caçapava, o Hospital de Pronto Socorro de Canoas (HPSC) era um dos pontos centrais do bairro Mathias Velho e atendia cerca de 4,2 mil pacientes por mês. Mas quem estava internado no local precisou ser retirado às pressas quando a água subiu, atingindo até os primeiros degraus da escada que leva ao segundo andar. O térreo teve perda total e toda a rede elétrica do hospital foi comprometida. Desde segunda-feira (10), uma equipe de 25 pessoas se dedica à limpeza.
Parte da mobília hospitalar, suja de lama, está no pátio onde antes entravam as ambulâncias. Os pacientes que chegavam de Samu iam direto para a chamada sala vermelha, que agora ainda está molhada e iluminada apenas pela luz do dia, de onde os trabalhadores da limpeza não param de sair com mais objetos estragados.
A Prefeitura estima cerca de 6 meses para o retorno parcial do HPSC, cuja recuperação vai custar até R$ 40 milhões. Por enquanto, o hospital Nossa Senhora das Graças absorve a demanda, a 5 km dali.



Quem está coordenando a segurança do hospital – que chegou a ser saqueado – é o supervisor Sandro Bueno. Enquanto trabalha no local destruído, ele pensa na casa onde mora, que não está muito diferente, no bairro Harmonia. “Faz parte, né? Perde de um lado, mas tem que ter força para seguir em frente. É o que eu estou fazendo, dando força para os meus familiares e também para os colaboradores que trabalham comigo na segurança do hospital”, diz.
Sandro mora em Canoas há 22 anos e trabalha na segurança do HPSC há sete. Ele conta que ficou mais abalado com as perdas na casa dos pais, também no bairro Harmonia, do que com a própria residência. “Eles lutaram anos e anos para ter o que eles tinham, hoje em dia é uma casa com tudo legalizado. E perderam tudo”, relata.
Do outro lado da rua, Carla Figueiredo reúne forças para limpar o restaurante que administrou durante seis anos. O local era alugado, assim como a casa dela, no bairro Harmonia, que também foi afetada pela inundação. Agora Carla vai deixar Canoas e se mudar para Tramandaí, no litoral gaúcho, onde já alugou um novo ponto comercial.
“Aqui virou uma cidade fantasma”, resume Carla, num misto de relato do presente e previsão do que está por vir. Ela conta que alguns estabelecimentos vizinhos também não vão mais funcionar ali. Parentes de quem estava internado no hospital eram parte da clientela, então o fechamento temporário do HPSC afeta os negócios.

Por outro lado, quem tem imóvel próprio fica relutante para se mudar. É o caso de Paulo Henrique Machado Linhares, 46 anos, funcionário público dos Correios que mora no mesmo terreno da mãe, de 76. Foram duas casas com tudo perdido. Há objetos como tênis e brinquedos no telhado de uma delas, prova de onde a água chegou.
“Minha mãe está limpando as coisinhas dela que sobraram. Ela não chorou nem nada, mas está com muita raiva. Há 46 anos a gente mora no mesmo lugar, nunca aconteceu isso. Do nada acontece, e a negligência foi tão grande… não passou carro de som avisando”, desabafa Paulo. Ele conta que ficou sabendo, na noite do dia 3, da água que viria. Isso porque foi até a casa de bombas, onde a equipe da Defesa Civil o alertou para evacuar.

“A gente não tem condições para comprar [uma casa] em outro lugar. Meu terreno vale 400, 500 mil, estão pedindo 150. Aí não vale a pena, a gente tem uma vida aqui”, afirma Paulo. Mas ele se preocupa com a chuva que vem no final de semana. “Onde vai parar esse lixo?”, pergunta apontando para os entulhos. “Não recolheram ainda. É um, dois caminhões passando aqui na Mathias. O prefeito falou que tem 80 caminhões na rua circulando. Na volta aqui, a gente não viu isso”.
Conforme a Prefeitura, até essa quarta-feira (12), foram retiradas das ruas 8,6 mil cargas de resíduos. O volume das cargas é de 103,8 mil metros cúbicos – o equivalente ao conteúdo de mais de 41 piscinas olímpicas.