
A empresa de consultoria que vai atuar na reconstrução de Porto Alegre após a enchente, a Alvarez & Marsal, é conhecida por ter atuado em locais devastados por catástrofes – como o furacão Katrina e o rompimento de barragens nas cidades de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais. No entanto, a atuação da empresa vem favorecendo interesses do setor privado e fomentando a privatização de serviços públicos.
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O prefeito Sebastião Melo (MDB) anunciou que um sócio gaúcho da A&M procurou a Prefeitura da Capital e ofereceu o serviço de forma gratuita por 60 dias, e que depois disso seriam avaliados os custos da consultoria. Segundo o professor da UFRGS Aragon Dasso Júnior, especialista em administração pública, décadas atrás os contratos da A&M com prefeituras já superavam US$ 15 milhões.
“Eles vão ganhar não apenas com a prestação de serviço direta e honorários. Vão ganhar também na sequência desse processo, porque incentivam um conjunto de privatizações. Há uma transferência dessas prestações de serviço – quando a empresa tem êxito nas sugestões – para o setor privado, que muitas vezes está alinhado a essa mesma consultoria”, explica Dasso.
À Folha, Melo disse que contratou a Alvarez & Marsal porque tem o poder de tomar a decisão, já que é prefeito. “Eu decidi contratar uma consultoria, umas duzentas me ofereceram, eu decidi contratar essa, se ela for bem, bom, eu decidi, porque eu posso decidir”. Questionado pelo veículo sobre os custos da consultoria após os primeiros 60 dias, Melo afirmou que só vai falar disso depois. Como mostra a reportagem da Matinal, o plano de ação da empresa extrapola dois meses de serviço.
Dasso chama atenção para o fato de que, mesmo que atuasse apenas 60 dias em Porto Alegre, a A&M teria acesso a todos os dados estratégicos da Capital, como folhas de pagamento e bases de dados sobre os servidores públicos, que têm um alto valor de mercado. “Daqui a 60 dias, eu imagino que ainda haveria tempo hábil para o prefeito fazer uma licitação. Mas, mesmo com licitação, a A&M largaria com vantagem porque já teria acesso a essas informações”.
Essa vantagem de informações teria acontecido também no leilão de privatização da Corsan. A A&M prestou serviço de consultoria, antes do leilão, tanto para a companhia de saneamento quanto para a Aegea, única empresa que participou do certame.
A A&M foi contratada duas vezes pela Corsan, ambas com dispensa de licitação. O primeiro contrato foi assinado em setembro de 2020, no valor de R$ 6,6 milhões, para ajudar na otimização do plano de investimentos em Capex, um dos parâmetros para se estabelecer o valor de uma empresa. O segundo contrato entre Corsan e Alvarez & Marsal, assinado em agosto de 2022, foi de R$ 3,8 milhões para a organização de um PMO (Project Management Office, ou Escritório de Projetos), um departamento que tem como tarefa definir padrões de gerenciamento de projetos empresariais.
Em 2023, a bancada do PT na Assembleia pediu que o Ministério Público investigasse o uso dessas informações privilegiadas pela Aegea na compra da Corsan, destacando o que está previsto no artigo 13 da Resolução nº 44 da Comissão de Valores Mobiliários, publicada em agosto de 2021: “É vedada a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, mediante negociação de valores mobiliários”.
“O que mais me preocupa é a crença de que uma empresa privada vai reconstruir o estado. É o que mostra o desmonte das instituições públicas”, pontua Dasso. “Quem a contrata é um governante que não acredita no próprio setor público, e não um que olhe para as suas capacidades internas”.
Para o professor da UFRGS, é possível que a consultoria da A&M acabe isentando a Prefeitura da responsabilidade sobre a tragédia e responsabilizando, por exemplo, o Departamento Municipal de Água e Esgoto (Dmae) e seus servidores. “Talvez haja um discurso de privatizar o Dmae, assim como foi privatizada a Corsan. A Prefeitura vai bater na crítica de que o sistema é arcaico, de que o Dmae precisa de uma solução a partir do setor privado”, pondera Dasso.
Ex-diretores do Dmae, do extinto Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) e da Corsan, em conjunto com outros especialistas na área, assinaram um manifesto em que sugerem uma série de medidas para reforçar o sistema de proteção contra enchentes em Porto Alegre. Os signatários defendem que o atual sistema é “robusto, eficiente e fácil de operar e manter”, mas que não está operando adequadamente pela falta de manutenção.
“Uma das especialidades dessa empresa é defender os gestores de sua responsabilidade”, pondera Dasso. Não consigo deixar de estabelecer uma relação entre a contratação da A&M e a atuação dela na defesa dos interesses dos gestores, enquanto gestores, e não do poder público”.
Mariana e Brumadinho, cidades mineiras devastadas pelo rompimento de barragens, também tiveram a consultoria da A&M após os desastres. Até hoje, não houve punição das mineradoras responsáveis e muitas vítimas sequer foram indenizadas.
O prefeito de Porto Alegre enfatizou, desde o anúncio da contratação, que a Alvarez & Marsal atuou na cidade norte-americana de Nova Orleans após a passagem do furacão Katrina. A A&M na verdade já trabalhava lá antes da tragédia, tendo sido contratada para reestruturar a educação pública na cidade. Após o furacão, os professores foram colocados em “licença por desastre” e aconselhados a procurarem emprego em outro lugar. O site da empresa de consultoria informa que 7 mil profissionais foram demitidos.
“A A&M interveio nas escolas com a gestão por resultados, e elas foram ‘transformadas’ em empresas que tinham que cumprir metas de produtividade. Esses indicadores fizeram com que A A&M entendesse que as escolas não estavam cumprindo seu papel e que deveriam ser extintas”, explica Dasso. Muitos professores foram dispensados e as escolas públicas passaram a ser administradas por serviços privados, remunerados pelo número de alunos e cumprindo metas. “Os alunos não recebiam bolsas totais, precisavam complementar a mensalidade. E a maior parte das escolas extintas em Nova Orleans foram as que atendiam majoritariamente alunos negros e de uma classe socioeconômica mais popular”, diz o professor.