Opinião
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12 de maio de 2024
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16:54

Breves considerações sobre o papel do Estado no desastre no RS (por Cíntia Florence Nunes e Leila Aparecida Thomassim)

Abrigo para atingidos pela enchente na Capital.  Foto: Cesar Lopes/ PMPA
Abrigo para atingidos pela enchente na Capital. Foto: Cesar Lopes/ PMPA

Cíntia Florence Nunes e Leila Aparecida Cunha Thomassim (*)

O cenário de desastre ambiental e calamidade pública que o Rio Grande do Sul enfrenta, até então sem precedentes na história, expõe algumas fragilidades no âmbito das políticas públicas, mesmo que ainda seja difícil mensurar todas as consequências na vida da população gaúcha. Dos 497 municípios do estado, 437 foram atingidos, afetando 1.947.372 pessoas [1]. Mesmo os municípios que não foram atingidos diretamente, hoje eles acolhem as famílias que foram obrigadas a deixar suas casas. São 337.346 pessoas desalojadas em todo o território gaúcho, fora o número de pessoas que tiveram suas vidas interrompidas ou ainda estão desaparecidas. A realidade vivenciada pelos refugiados climáticos é marcada por sentimentos de angústia e tristeza, agravados pela falta de acesso a serviços básicos, como à água potável, alimentação, medicamentos, tratamentos de saúde, energia elétrica, entre outros.

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Diante deste cenário, é impossível negar a importância da grande onda de solidariedade do povo gaúcho, do papel dos movimentos sociais populares, entidades e organizações da sociedade civil, que prestaram socorro à população que teve que deixar suas casas e àquelas que foram resgatadas após horas de espera. Além disso, foi possível presenciar o expressivo número de voluntários que prestaram apoio imediato, abrindo espontaneamente alojamentos e pontos de coleta para doações, sem qualquer relação com o poder público e ação conjunta e coordenada. 

Contraditoriamente, evidenciou-se a falta de planejamento dos recursos que chegavam nestes espaços, com relatos de desperdícios de alimentação e um número expressivo de pessoas disponíveis para ajudar, mas sem saber onde e como ajudar. A falta de uma coordenação e ações planejadas, nos leva a circunstâncias ainda mais graves, como a exposição de crianças e mulheres a situações de risco. Em meio aos abrigamentos, começaram a surgir denúncias feitas pelo movimento de mulheres de que estavam acontecendo casos de abuso sexual e infantil em alojamentos temporários. O que foi confirmado, quando seis pessoas foram presas por suspeita de estupro nos abrigos. Os casos ocorreram na capital, Porto Alegre, em Canoas e em Viamão [2].

Se por um lado evidenciou-se uma justa valorização do papel do voluntariado, do grande movimento de solidariedade dos gaúchos, dos brasileiros, em especial pela mídia, pouco se fala do papel do Estado nas ações de prevenção e no enfrentamento das tragédias climáticas, bem como, na efetivação das medidas de proteção às pessoas atingidas.

Quem vive no Rio Grande do Sul conhece e vem denunciando o crescente processo de precarização das estruturas públicas estatais, do crescimento do desinvestimento nas políticas de saúde, assistência social, educação, bem como, na questão socioambiental, na infraestrutura urbana etc. Se por um lado temos a consciência da dimensão imprevisível dessa tragédia e suas consequências, a perversidade dessa realidade expressa a inoperância do poder público em atender a população em situações de desastres ambientais e calamidade pública e a ilusão neoliberal de que conseguem resolver seus efeitos e as necessidades que se apresentam com voluntarismo. 

Como mencionado anteriormente, não temos dúvidas que estamos diante de uma situação, até então, nunca vivenciada. Contudo, a falta de planejamento e coordenação das ações mostra a falência dos governos que negam a crise climática, sobretudo quando as situações de risco, emergência e calamidade não estão na agenda e no orçamento público. 

Reportagens mostram que o governador Eduardo Leite pouco investiu para equipar a Defesa Civil, em 2024, além de cortar e alterar 500 pontos do Código Ambiental do RS, medidas que, segundo ambientalistas, desmontaram as leis estaduais de proteção ambiental [3]. Sabe-se que o projeto de Eduardo Leite é privatizar os serviços públicos, chegando mesmo a propor a retirada do muro da Mauá e revitalizar toda a Orla do Guaíba com recursos da iniciativa privada.

O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, tampouco ajudou na prevenção das catástrofes. A Prefeitura de Porto Alegre não investiu um real sequer em prevenção a enchentes em 2023, conforme dados retirados do Portal da Transparência de Porto Alegre [4]. Na capital gaúcha não surpreende a desorganização e falta de planejamento dos órgãos públicos, uma vez que se presencia um desmonte geral das políticas públicas de garantia de direitos. Como exemplo, podemos citar a oferta dos serviços pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS), onde boa parte dos equipamentos e equipes são terceirizadas.

Em situações de riscos, emergência e calamidade pública é crucial que haja a articulação intersetorial das políticas de Assistência Social, Saúde, Habitação, Defesa Civil, Sistemas de Justiça e Direitos Humanos, a fim de garantir os direitos da população atingida. Porém, para que isso ocorra, é fundamental a existência de serviços públicos com infraestrutura e equipes técnicas que possam assegurar a qualidade dos serviços prestados, em especial para acompanhamento das famílias atingidas nos diversos municípios.

Medidas emergenciais são urgentes para que se avance numa oferta de ações, serviços e programas qualificados por parte do Estado na proteção social das populações atendidas. Além da urgência na reestruturação dos serviços públicos, tais como CRAS, CREAS, Centro POP, unidades de saúde e escolas, muitas devastadas com deslizamentos e enchentes, será também fundamental que haja a contratação emergencial de equipes técnicas, para atuarem no atendimento às famílias que estão desabrigadas, sobretudo, no planejamento e na coordenação de ações de orientação à população quanto à garantia de direitos sociais. 

Se trata de garantir junto às populações atingidas, um quadro de profissionais com capacidade técnica e qualificação para construir os planos de reconstrução de forma participativa em seus territórios, para que as pessoas se sintam parte e possam ser protagonistas de suas histórias. Ou seja, é fundamental que avancemos na reconstrução dos serviços públicos com participação popular, a fim de garantir a qualidade dos serviços prestados. 

Afinal, muitas famílias se encontram em processo de luto e será necessário transformar todo esse sentimento de tristeza e dor em processos de organização e de luta para que novos desastres não se multipliquem pela omissão do Estado na proteção à vida humana e da natureza. 

[1] Defesa Civil atualiza balanço das enchentes no RS.

[2] Porto Alegre terá abrigo exclusivo para mulheres e crianças após prisão de suspeitos de estupro

[3] Eduardo Leite cortou ou alterou quase 500 pontos do Código Ambiental do RS em 2019

[4] Porto Alegre não fez nenhum investimento em prevenção de enchentes em 2023, diz site.

(*) Cíntia Florence Nunes, Assistente Social, Doutora em Serviço Social, Servidora Pública, Conselheira Presidenta do CRESS RS.

Leila Aparecida Cunha Thomassim, Assistente Social, Mestre em Política Social e Serviço Social, militante do Fórum de Trabalhadores do SUAS. 

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