
A vereadora Mari Pimentel (Novo), presidente da CPI da Educação, criada com o objetivo de investigar supostas irregularidades na compra de materiais didáticos pela Secretaria Municipal de Educação (Smed) durante o governo do prefeito Sebastião Melo (MDB), entregou nesta quarta-feira (29) um relatório paralelo sobre os fatos apurados ao procurador-geral de Justiça, Alexandre Saltz, chefe do Ministério Público Estadual (MPE).
O relatório oficial das duas CPIs que trataram do assunto – a outra é presidida pelo líder do governo Melo na Câmara, vereador Idenir Cecchin (MDB) – será escrito pelo relator Mauro Pinheiro (PL) e entregue nos próximos dias.
Na versão resumida do documento de 24 páginas, diagramado em formato de revista, a vereadora apresenta um resumo das principais descobertas da CPI, contando como funcionou o suposto esquema de cartel com compras direcionadas, sem licitação, de mais de R$ 100 milhões realizadas pela Smed, com materiais que ficaram armazenados e sequer chegaram nas escolas.
O relatório organiza uma série de nomes de empresários, empresas e funcionários públicos que teriam participado das aquisições irregulares, ligando as relações pessoais e profissionais entre os envolvidos. No centro da investigação está o modelo de compra por meio da adesão de ata de registro de preço – procedimento conhecido como “carona” por acelerar o gasto público dispensando licitação
Na cronologia dos fatos, Mari afirma que a descoberta de uma fotografia onde o lobista J.F.S. se reuniu com a cúpula da prefeitura abriu uma das maiores linhas de investigação da CPI da Educação. Conhecido como “Jajá”, ele é representante comercial das empresas Inca Tecnologia e Astral Científica, comandadas pelo empresário Sérgio Bento de Araújo, e esteve diretamente envolvido em seis das 11 compras investigadas. Entre junho e outubro de 2022, foram mais de R$ 43 milhões recebidos da prefeitura pela venda de materiais pedagógicos que acabaram estocados em depósitos e escolas da cidade.
Em nota, a Smed disse que não vai se pronunciar a respeito do relatório paralelo, “que não cumpre os ritos legais”: “A pasta se manifestará somente após o documento oficial apresentado pelo relator eleito para as duas comissões. Cabe salientar, por fim, que as ocorrências de ambas as CPIs são objeto de apuração pela própria gestão, a partir de determinação do prefeito Sebastião Melo”.
Ao longo do relatório, a vereadora procura explicar a intrincada teia de contatos que teria atuado nas compras suspeitas da Secretaria Municipal de Educação (Smed). O mesmo J.F.S., por exemplo, também é proprietário das empresas JBG3 e World Soluções, que, em tese, vendem os mesmos produtos das empresas Inca e Astral, das quais ele é representante. Segundo a vereadora, as empresas JBG3 e World Soluções apareceram nas licitações apenas para entregarem orçamentos mais altos, o que seria um indício de fraude nos processos de aquisição, com intuito de cumprir formalmente com o requisito da demonstração da vantajosidade da adesão à ata.
Desse modo, a Inca vendeu, em quatro contratos, cerca de 400 mil livros, no valor de R$ 27,9 milhões, material que depois ficou estocado em depósitos pela cidade. Desses livros, mais de 73 mil unidades foram entregues com erros de português e matemática e tiveram que ser devolvidos.
“Essas compras foram realizadas com direcionamento de empresas e fraude à coleta de orçamentos, pegando carona em uma tomada de preços do governo de Sergipe”, sustenta a presidente da CPI da Educação no relatório.
Por sua vez, a empresa Astral vendeu 104 laboratórios de ciências ao custo de R$ 6,7 milhões. Os kits foram entregues pelo próprio J.F.S. no dia 14 de julho de 2022, no depósito alugado pela Smed no bairro Jardim Botânico.
Para que essa compra ocorresse, a empresa Sirius Tecnologias Educacionais apresentou orçamento mais alto. O detalhe é que a proprietária da empresa, Ana Sara Domingos Araújo, é sobrinha de Sérgio Bento de Araújo, o dono da empresa vencedora, e filha do irmão do empresário, Alfredo Bento de Araújo.
“Alfredo é investigado pelo Ministério Público Federal por conluio em outra concorrência forjada. Enquanto no caso denunciado pelo MPF a empresa de Alfredo apresentou orçamento superior ao da empresa do irmão Sérgio, no caso de Porto Alegre foi a empresa de sua filha, Ana Sara, que apresentou orçamento superior ao da empresa do tio Sérgio”, diz Mari Pimentel.
O sexto contrato, explica a vereadora, envolveu a derrota na apresentação de orçamentos. Para ela, a World Soluções, empresa de J.F.S., enviou um orçamento maior que o da empresa vencedora para assim justificar a adesão da ata vencida pela Sudu, empresa com sede no Amazonas – cujos materiais vendidos à Prefeitura de Porto Alegre foram entregues pelo próprio J.F.S.
“Os indícios da formação de um cartel se aprofundam ao analisar as relações entre as empresas. Os livros vendidos pela Sudu nesse contrato para Porto Alegre na verdade eram da Inca, e foi J.F.S. que realizou a entrega dos livros no depósito da Smed. Segundo ele, apenas a título de ‘apoio logístico’ solicitado pela editora”, afirma a presidente da CPI da Educação no relatório paralelo entregue ao Ministério Público Est Estadual.
“Ao longo da CPI verificou-se uma confusão entre a atuação de J.F.S. e a empresa Inca. Ele afirma por vezes representar a empresa, por vezes comprar e vender produtos dela por meio da World Soluções, e por vezes auxiliar na distribuição. J.F.S. realizou uma série de contradições em seus relatos entre Inca e World Soluções, de modo que esta segunda – aparentemente – jamais participou ou venceu qualquer licitação, funcionando como uma empresa de fachada para entrega de orçamentos sempre mais altos, que justificassem a adesão a atas vencidas pela Inca, Astral e Sudu”, destaca Mari Pimentel.
De acordo com a vereadora, em tais contratações se misturam diversas empresas, embora todas vendam materiais da Inca Tecnologia. Ela suspeita que a Inca tenha diversos braços articulados por meio de CNPJs distintos dedicados a duas atividades em prol da empresa e da venda de materiais: vencer pregões pelo país com as empresas Inca, Astral e Sudu e apresentar propostas e orçamentos que justifiquem a “vantajosidade” da adesão a registros de atas vigentes com as empresas World Soluções, Pleno Distribuidora e Editora Verde.

A ex-secretária da Educação de Porto Alegre, Sônia da Rosa, está no centro das investigações sobre as compras suspeitas e seu papel é destacado pela vereadora Mari Pimentel no relatório entregue ao Ministério Público Estadual. Ela esteve no cargo substituindo Janaína Audino, depois de também ter sido secretária da Educação em Canoas.
No documento, Mari recorda que a demissão de Janaína aconteceu, em parte, por ela não ter conseguido gastar o mínimo constitucional de 25% da receita corrente líquida em despesas com educação. Em 2021, o percentual atingido foi de 21,02%, faltando R$ 176 milhões para a meta.
O descumprimento da regra poderia tornar o prefeito Melo inelegível por improbidade administrativa, conforme a Lei de Responsabilidade Fiscal. Porém, devido a uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) aprovada durante a pandemia do novo coronavírus, os municípios puderam compensar o que faltou com investimentos nos anos seguintes.
Na análise da presidente da CPI da Educação, foi neste contexto que a ex-secretária Sônia assumiu o cargo, no dia 3 de março de 2022, com a missão de “comandar uma verdadeira força-tarefa de gastos”. De Canoas, ela trouxe seu “núcleo duro” de assessoras, com servidoras de sua confiança colocadas em cargos estratégicos no setor pedagógico da Secretaria Municipal de Educação (Smed), responsável por demandar as aquisições e instruir os processos de compra.
“Menos de uma semana após a posse, a secretária já recebia em seu gabinete o empresário J.F.S., o ‘Jajá’. Ela já havia celebrado contratos com ele na Prefeitura de Canoas, seguindo o mesmo modelo de contratação usado em Porto Alegre, a adesão a atas de Registro de Preços”, destaca Mari Pimentel. E assim foram adquiridos livros da empresa Inca e conjuntos de robótica da empresa Astral. “Curiosamente, os orçamentos apresentados para as compras em Canoas são das mesmas empresas consultadas por Porto Alegre”, ressalta a vereadora.
Para a presidente da CPI da Educação, o mecanismo das atas de preço, embora legal, pula diversas regras das compras públicas e acelera os gastos, já que por meio dele é possível utilizar a licitação feita por outros estados e municípios.
Ele destaca que uma das primeiras ações da secretária Sônia foi mudar o fluxo de adesão às atas de registro de preço. Segundo o ex-secretário adjunto Mário de Jaime Gomes de Lima, em seu depoimento na CPI da Educação, já em abril de 2022 os processos do tipo foram concentrados no setor pedagógico, controlado pelas indicações de Sônia.
Em maio de 2022, por decreto, o prefeito Sebastião Melo concedeu à Smed poderes para aderir às atas de preço diretamente, sem necessitar de análise prévia da Prefeitura. O ato foi exclusivo para a Secretaria de Educação e consolidou o projeto de aceleração dos gastos. Entre julho e dezembro de 2022, os gastos chegaram a R$ 73,5 milhões. Das 21 adesões realizadas pela Prefeitura em 2022, 11 foram da Secretaria de Educação.

No documento entregue ao Ministério Público Estadual, a vereadora Mari Pimentel enfatiza que o relatório preliminar da auditoria realizada pela Prefeitura demonstrou irregularidades nos processos de compra da Secretaria Municipal de Educação (Smed). Não foram seguidos os procedimentos corretos de pesquisas de preço e nem justificativas que demonstrassem a impossibilidade de aquisição de itens similares ou a vantagem econômica.
A pesquisa de mercado é considerada uma etapa fundamental para a correta utilização da modalidade de adesão a ata de preços, de modo a garantir que não haja produtos similares por preços mais baixos do que os registrados no processo.
“Nas compras realizadas pela SMED, os documentos referentes a essa comprovação eram fracos e com notáveis problemas, como trechos inteiros copiados diretamente de peças de marketing das empresas contratadas. O objetivo era criar requisitos complexos, que descreviam diretamente os produtos oferecidos por certas companhias – ou seja, direcionar as compras”, afirma a presidente da CPI da Educação.
Ela pontua que ao longo da CPI houve a denúncia de que os processos de compra eram feitos com orçamentos forjados, direcionados para beneficiar empresas escolhidas previamente. Segundo áudios divulgados pela servidora Mabel Luiza Vieira, envelopes com pendrives eram entregues na Secretaria de Educação, com os documentos necessários para a adesão às “caronas”, como orçamentos e justificativas previamente elaboradas e com os vencedores definidos.
Conforme os áudios, os pendrives eram entregues por Alexandre Borck, secretário municipal de Inovação e presidente municipal do MDB.
Mari Pimentel explica que duas servidoras eram responsáveis pela instrução dos processos de compra: Patrícia Silva e Anelise Nardino. Em depoimento à CPI, elas confirmaram receber os documentos necessários para as aquisições diretamente de Michele Bartzen, coordenadora pedagógica, que definia quais as empresas deveriam constar na concorrência. De quatro aquisições instruídas por Patrícia e Anelise, todas foram vencidas pela Inca Tecnologia, de Sérgio Bento de Araújo. Os processos eram referentes a compra de quase 400 mil livros, ultrapassando R$ 27 milhões. Mais de 73 mil unidades precisaram ser devolvidas posteriormente, após serem encontrados erros em lições de Língua Portuguesa e Matemática.

O empresário Valdemar Abila e suas empresas Brink Mobil e Edulab chegaram em Porto Alegre via ata de registro de preços. A primeira compra realizada destas empresas iniciou com a assinatura da servidora Mabel Vieira e da secretária Sônia da Rosa. A aquisição de jogos e materiais pedagógicos da empresa Edulab custaram R$ 4,2 milhões.
A presidente da CPI da Educação conta que no decorrer do processo houve uma certa estranheza, dentro da Secretaria Municipal de Educação (Smed), com a falta de motivação para a compra. Foi pedido então que a compra fosse melhor justificada, demonstrando a vantagem de aderir à referida ata de preços e o benefício econômica dela.
“A servidora Mabel Vieira, então, editou o processo eletrônico, mas sem adicionar alterações significativas. Estranhamente, o processo passou sem novos questionamentos, havendo a suspeita de que tenha sido exercida pressão política para a aprovação. A pressa em aprovar a compra continuou, já que o processo pulou etapas importantes, como a análise da Procuradoria-Geral do Município. Entre a abertura do processo, em 14 de outubro e a realização dos pagamentos, em 28 de dezembro, foram apenas 75 dias”, ressalta Mari Pimental no relatório paralelo.
As compras do grupo de Valdemar Abila continuaram com a aquisição de 400 mesas interativas para crianças em escolas que possuem turma de Jardim. Para a vereadora, a falta de comprovação da necessidade é “notável”, havendo apenas uma nota dizendo que “a ata em que se pretende aderir contempla as especificidades técnicas que atendem as necessidades das crianças dessa faixa etária da educação infantil”.
O processo foi iniciado pela secretária Adjunta, em 18 de agosto de 2022, incluindo no processo um termo de referência apócrifo. Para Mari, o conteúdo não foi capaz de demonstrar a adequação da ata aos interesses e necessidades da Smed, tampouco a ampla pesquisa de mercado.
No relatório paralelo, a vereadora conta que por determinação da Coordenação de Planejamento e Gestão de Tecnologias da Informação e Comunicação, o Termo de Referência foi corrigido diversas vezes ao longo da tramitação da contratação, o que na sua avaliação é um sinal da ausência de estudo prévio que justificasse a adesão à ata de registro de preços.
Durante os trabalhos da CPI da Educação, vieram a público prints de conversas divulgadas pela servidora Mabel Vieira. Nos registros, ela conversa com o ex-secretário adjunto de Educação, Mário de Lima. O secretário solicita que Mabel se atente ao despacho da compra da empresa Edulab, preocupado com a conclusão do processo antes do final de 2022. Mabel responde que a compra precisa sair, já que essa é a “dos caras”.
No trecho final do relatório entregue ao Ministério Pública Estadual, a presidente da CPI da Educação afirma que a investigação revelou “diversas ligações obscuras” entre a ex-secretária, sua equipe e fornecedores em contratos com “fortes indícios de irregularidades”. Como exemplos, ela cita as atas de preço com direcionamento para vendedores, orçamentos fraudulentos, fornecedoras com sócios laranja e dispensas de licitação com critérios enviesados.
Mari Pimentel ainda destaca que a pressão política realizada pela base aliada do prefeito Melo impediu a aprovação de diversos requerimentos que, na sua avaliação, permitiriam o aprofundamento das investigações. Entre os requerimentos rejeitados, a quebra do sigilo telefônico da ex-secretária Sônia, da assessora Mabel e dos sigilos fiscal e bancário dos empresários ligados à Inca Tecnologia. Também foi rejeitado um pedido de divulgação da agenda de Sônia.
A vereadora também ressalta a negativa da prefeitura em conceder acesso à auditoria completa realizada pela Secretaria da Transparência.
“Ironicamente, a falta de transparência mobilizou o governo para rejeitar o requerimento na CPI e brigar na Justiça para manter secreto o resultado das apurações internas. Apenas uma versão sumária foi divulgada, restringindo diversas informações importantes para os trabalhos da Comissão”, conclui.