

Alfredo Gil (*)
Uma parte do trabalho de Freud popularizou-se através da ideia (parcialmente verdadeira) de que a essência dos nossos atos e pensamentos encontra-se atrás das aparências, ou seja, haveria sempre um sentido velado e determinante para além do que se diz ou se faz.
Freud tinha este princípio geral em mente tanto para cavoucar a neurose de seus pacientes como para a compreensão dos fenômenos coletivos. Assim, ele analisava os sintomas da vida cotidiana de um sujeito e, com o mesmo método, refletia sobre os fenômenos sociais, as crenças religiosas, os movimentos de grupos e massas, as concepções de mundo que cimentam as pessoas entre elas. Mas, na medida em que observava os processos ontogenéticos da subjetividade, relativos à história de um indivíduo, sentiu a necessidade de articular tais processos com a evolução filogenética, ou seja, com a dimensão relativa a uma memória coletiva, a uma verdade histórica, que precede e transborda a simples existência daquele, e a condiciona em certa medida.
A filogênese é uma noção controvertida. Ela nunca ganhou a dignidade de um conceito, não teve entrada no primeiro e mais conhecido dicionário de psicanálise de J. Laplanche e J.-B. Pontalis, e, no entanto, é uma noção que atravessa a obra de Freud.
Ora, estes foram os termos – ontogênese e filogênese – que encontrei para começar a pensar, talvez para poder suportar, a extrema violência do filme visualizado por milhões de pessoas mundo afora no qual se assiste o policial Derek Chauvin, da cidade de Minneapolis (USA), debruçado, com todo o seu peso, apoiando seu joelho no pescoço de George Floyd, e levando-o à morte no dia 25 do mês passado. Assiste-se aí a uma violência inerte, sem combate nem disputa, dois corpos praticamente imóveis durante quase dez minutos: um dominante e o outro dominado, um completamente indiferente e o outro agonizante. Se Auguste Bartholdi viesse a ter a intenção de esculpir o avesso da Estátua da Liberdade, uma Estátua da Crueldade, poderia encontrar sem dúvida inspiração nesta imagem.
Me perguntei de onde vinha tanta crueldade para assumir uma tal postura junto a um semelhante, que já estava imobilizado, algemado, e repetia sem parar « Não consigo respirar ». A acusação que pesava sobre George Floyd seria a de ter passado uma nota de 20 dólares falsa.
Por 20 dólares George Floyd pagou com a vida. Talvez devemos dizer que a vida de George Floyd, para Derek Chauvin, valia 20 dólares. Mas também não é suficiente. Devemos acrescentar que para Derek Chauvin a vida de um afro-americano, ou seja, de um negro, vale 20 dólares. Quem sabe nem isto.
Mas antes de esbarramos no limite de uma análise que repousaria unicamente na explicação de um ato pelas motivações de um indivíduo (ontogênese), podemos estender nosso questionamento inscrevendo a motivação de Derek Chauvin em um processo evolutivo, filogenético, que o autoriza e sustenta sua ação. Uma tal consideração não pretende evidentemente eximir o policial de sua responsabilidade individual.
Tomemos emprestado uma diferença conhecida em economia entre conjuntura e estrutura para constatar que a conjuntura americana orientada pelo Presidente D. Trump autoriza e incita este tipo de intervenção policial ao promover a violência coercitiva com a inadequação que lhe é própria através de seus anúncios via twitter. No entanto, o estatuto de presidente dos Estados Unidos implica estruturalmente, antes de tudo, o exercício de uma função de poder que se define pelo lugar que ele ocupa e não pelas características individuais da pessoa que aí se instala. Mas o despotismo sem limite da conjuntura atual caracterizada pela onipotência e arrogância do homem Trump personaliza ao extremo esta função pervertendo-a. Uma das consequências graves que se observa é que seu exercício é percebido pelo seu eleitorado e mesmo pela polícia – instituição responsável pela garantia da ordem social – como um estilo, podendo ser seguido como modelo, não sendo identificado como uma missão que o incumbe de orquestrar o conjunto das instituições que constituem um país.
Assim, a política do presidente americano para conter as manifestações de protesto que se multiplicam nos Estados Unidos, contra o racismo e a violência policial, após a morte de George Floyd, tem instigado ainda mais o ódio na população em razão de sua repressão, ao ameaçar os manifestantes com a intervenção do exército. A incongruência de sua atitude devido à sua incompetência para avaliar a situação é tamanha que o próprio Ministro da Defesa dos Estados Unidos, Mark Esper, que assumiu sua função em julho do ano passado, se opôs a Trump. E, como se não bastasse, mesmo o predecessor de Mark Esper, o General Jim Mattis, que já havia caído fora da administração Trump, afirmou quarta-feira passada que era a primeira vez que via um presidente não tentar federar os americanos e nem sequer fazer de conta. Ao contrário, ele busca dividi-los.
Mas a análise conjuntural da situação americana não parece suficiente para compreender o que aconteceu em Minneapolis.
A conjuntura Trump exacerba elementos estruturais profundos; aquilo que Freud chamou de verdade histórica quando abordou o tema da filogênese.
Qual é a verdade histórica americana, para além do estilo conjuntural Trump, que dá legitimidade a Derek Chauvin autorizando-o a manter firme seu joelho no pescoço de George Floyd até a sua morte e com total descargo de consciência ? Qual é a verdade histórica americana que autorizou um pai de 64 anos e seu filho de 34 a atirarem e a matarem sem hesitar, no dia 23 de fevereiro, um outro afro-americano, Ahmaud Arbery, de 25 anos, enquanto este corria e fazia ginástica, simplesmente porque suspeitaram que estivesse preparando um roubo? Qual é a verdade histórica americana que torna possível o fato de 1.000 homens negros morrerem por causa de violência policial todos os anos e 5% dos homens adultos negros encontravam-se presos em 2018 ( Thomas Piketty in Capital e Ideologia, 2019 ) ?
Não há dúvida de que uma parte substancial desta verdade histórica americana encontra-se na exceção que consta na 13° emenda da Constituição dos Estados Unidos, a qual aboliu e proibiu a escravatura e a servidão involuntária, « exceto » como punição por um crime. E foi assim que a exceção fundou a regra, em outros termos, que o escravo, uma vez livre, tornou-se criminoso. Exemplo de delito: vagabundagem. Detalhes dessa história vemos no documentário intitulado « A 13° Emenda » (Netflix).
Minha filha, que me manteve informado sobre a atualidade em torno do acontecimento da morte de George Floyd, veio me perguntar o nome do psiquiatra que afirmou que julgamos o grau de civilização de uma sociedade pela maneira como ela trata seus loucos, propondo assim parafrasear Lucien Bonnafé com a afirmação segundo a qual « julgamos o grau de civilização de uma sociedade pela maneira como ela trata os negros ».
Outro dia, minha outra filha disse que uma amiga estava querendo consultar com um psicanalista e me perguntou se eu tinha uma boa indicação. Ela acrescentou que tinha preferência por alguém que fosse da mesma cor de pele que ela. Lamentei, por uma fração de segundo, que a confiança e o sentimento de compreensão pudessem depender, para esta jovem, da cor da pele. Por outro lado, me parece, infelizmente, difícil recusar o fato de que uma marca no corpo se traduza socialmente, há séculos, e ainda hoje, como uma inferioridade e não como simples diferença. Talvez um dia, uma demanda como esta poderá ser entendida como um pedido de similitude necessária para se lançar num trabalho terapêutico, do mesmo modo que alguém prefira que seu psi seja alguém do mesmo sexo, condição inicial sine qua non para falar sobre o Outro, pensar o Outro.
(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: alfredo.gil@wanadoo.fr
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