
De acordo com o Boletim Epidemiológico de Mortalidade Materna, Infantil e Fetal, elaborado pela Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul (SES) e divulgado na semana passada, referente a 2020 e 2021, a série histórica de mortalidade materna interrompeu a linearidade vista nos últimos anos. Em 2021, foram registrados 114 óbitos, um aumento de 111% em relação ao ano anterior, quando houve 54. Os dados de 2020 e 2021 ainda são preliminares e estão sujeitos a alterações até o fechamento do banco de dados, feito até setembro de 2022.
Segundo as equipes de saúde da Mulher e da Criança da SES, que organizaram o boletim, o aumento brusco na mortalidade se deve, prioritariamente, à eclosão da pandemia de covid-19. Em 2020, entretanto, somente quatro casos foram relacionados a covid, e cinco a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) – quando não era informada a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-10) no atestado de óbito -, assim, totalizando a razão de 16,7% das mortes.
Já em 2021, quando a vacinação começava a ser disponibilizada, o número de mortes em decorrência da covid disparou para 54,4% dos casos, e em todos eles a pessoa não havia recebido nenhuma dose da vacina. Para Caroline Chiarelli, médica e integrante da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, gestantes e puérperas foram alvo especial de obstáculos para a vacinação, com grande circulação de desinformação por vias oficiais, como pelo governo federal, e até mesmo por profissionais da saúde. “Enquanto o mundo todo vacinava suas gestantes e melhorava o índice de sucesso contra a covid, o Brasil se apegava a um único caso de complicação atribuída à vacina e que foi amplamente divulgado, amedrontando o grupo de mulheres gestantes, promovendo receio e dúvida”, explica.
Ainda de acordo com as equipes de saúde da SES, dos 62 óbitos maternos relacionados à covid-19, 52 ocorreram no primeiro semestre de 2021 e 10 no segundo, “o que demonstra o impacto positivo da inclusão desse grupo na campanha de vacinação”. Além da covid-19, os dados mostram que hemorragia e pré-eclâmpsia seguem dentre as principais causas de óbito. Cruzando dados, da mesma maneira que a mortalidade por causas hemorrágicas segue em ascendência, o crescimento de partos cesáreos também é observado, com somente 36,06% dos partos realizados por via vaginal em 2020, a menor proporção desde 2010. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a operação cesariana seria necessária e traria benefícios para mãe e bebê somente entre 10% e 20% dos nascimentos. Quando feita em casos indevidos, a prática expõe gestantes a riscos desnecessários como infecções, hemorragias, ruptura uterina e placenta prévia em gestações futuras.
Além do agravamento na quantidade de óbitos, a pandemia trouxe outros obstáculos às gestantes e puérperas, sendo uma das principais causas da sobrecarga de profissionais e serviços de saúde. Ainda, para diminuir a possibilidade de contágio, consultas de pré-natal de baixo risco foram mais espaçadas, dificultando o acompanhamento de gestantes.
Segundo Caroline, a restrição de acompanhante nas consultas “fez com que muitas grávidas tivessem que lidar com as informações sobre suas gestações de forma solitária”. A ausência de doulas (profissionais que acompanham a gestante durante o período de gravidez, parto e período pós-parto), a redução da equipe da assistência ao parto e a obrigatoriedade do uso de paramento cirúrgico para evitar contaminação foram fatores que também contribuíram para a ambiência se tornar “menos personalizada e mais hospitalizada”.
“A pandemia desvirtuou a humanização do nascimento, isso é fato. Muitas práticas que são fundamentais para a assistência humanizada tiveram de ser revistas pois era impossível mantê-las diante da gravidade dos casos de covid antes da vacina, por exemplo, o contato pele a pele entre mãe e bebê, quando o nascimento acontecia durante o curso da doença”, conta a ginecologista e obstetra.
Os dados contidos no documento são extraídos de bancos de dados públicos do DATASUS, como o Sistema de Informação Sobre Mortalidade (SIM), o Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (SINASC) e o Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna, Infantil e Fetal (SVS). Com a pandemia, outro banco utilizado foi o Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe).
A coleta e o acompanhamento acontecem durante todo ano pelas equipes da Política de Saúde da Mulher e da Política de Saúde da Criança, para monitorar o número de óbitos, bem como a investigação dos casos de mortalidade materna, infantil e fetal no Estado. Em 2021, foi instituído o Comitê Estadual de Prevenção e Enfrentamento da Mortalidade Materna, Infantil e Fetal, que tem como finalidade analisar os óbitos materno, infantis e fetais com o objetivo de identificar fatores de evitabilidade, avaliar a qualidade da assistência à saúde prestada à mulher e à criança, para subsidiar políticas públicas e elaborar propostas de medidas de intervenção para redução dessa mortalidade.