Mobilidade
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28 de março de 2022
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15:56

Ligar para saber quando passa ônibus adaptado: como é ser cadeirante em Porto Alegre

Por
Editorial J
editorialj@pucrs.br
Arte: Matheus Leal/Sul21
Arte: Matheus Leal/Sul21

Fabiane Cunha e Lucas Brzezinski*

“Quem adaptou esses ônibus, não está em uma cadeira de rodas”. A frase de Carolina Santos, cadeirante há 21 anos, descreve a dificuldade que ainda é enfrentada por parte da população para acessar o transporte público de Porto Alegre. Carol, como é conhecida, é líder do Movimento Feminista de Mulheres com Deficiência Inclusivass e integra o Coletivo Feminino Plural. Para ela, “o transporte de Porto Alegre ainda é precário e a cidade ainda não está totalmente apta a nos receber”.

A Lei Brasileira nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, “estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida. Entretanto, mais de 20 anos depois de entrar em vigor, as dificuldades enfrentadas por cadeirantes ainda são muitas, a começar pela falta de rampas e elevadores de acesso nos coletivos.

Em Porto Alegre, segundo dados da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), em janeiro de 2022, 100% dos veículos de transporte público em circulação atendiam à Portaria nº 360 do Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro). Isto indica que todos os veículos que detém o selo possuem qualidade adequada de fabricação, respeitando e atendendo aos requisitos de determinada norma ou regulamento técnico.

No entanto, o selo do Inmetro não significa que todos os veículos de Porto Alegre oferecem o devido suporte para os cadeirantes. Afinal, a própria EPTC informa que de um total de 1.465 ônibus da frota cadastrada (janeiro 2022), 1.340 veículos (91,5% da frota) são os que de fato possuem instalação de plataforma elevatória/elevador ou piso baixo [que também pode ser rampa], além de espaço reservado, que facilitam o acesso para quem utiliza cadeira de rodas. Em suma, 8,5% dos ônibus ainda não são de fato acessíveis aos cadeirantes.

Na prática, para quem utiliza o transporte público no dia a dia e depende da acessibilidade, os problemas vão além do percentual relativamente baixo de veículos não adaptados. “Ainda que muitos dos ônibus sejam considerados acessíveis, eles carecem da acessibilidade propriamente dita, já que mesmo possuindo elevadores, há muitos casos em que estão danificados, fazendo com que não possamos acessar o veículo”, explica Carol. “O problema é que quando o elevador está com defeito, isso faz com que eles ora não abram, ora não desçam e ora não subam, o que acaba inviabilizando nosso acesso nestes transportes”.

A cadeirante relata que para sair de casa costuma ligar para a garagem de ônibus e perguntar a que horas um veículo adaptado e com bom funcionamento do elevador estará disponível. “Faço isso para evitar o risco de ir para a parada e chegar um ônibus que eu não consiga acessar, o que já aconteceu e muito. Lógico que ligar também não é uma garantia que tudo dará certo, mas diminui um pouco o risco”.

“Nos últimos tempos, eu tive de começar a sair de casa duas horas antes dos compromissos para que, caso o ônibus tenha defeitos de acesso ou já tenha um cadeirante ocupando a vaga especial, dê tempo de eu pegar outro ônibus e não me atrasar para minhas tarefas”, diz Carol.

Carol passou a ligar para saber quando passa um ônibus adaptado na parada mais próxima. Foto: Arquivo Pessoal

Geraldo Barbosa utilizou cadeira de rodas entre 2017 e 2019 e hoje possui uma prótese na perna para locomoção. Ele lembra que há dois tipos de acesso para cadeirantes nos ônibus: os elevadores e as rampas. “Confesso que prefiro esse sistema [rampas] porque considero mais prático, rápido e um pouco mais eficiente”.

Assim como Carol, ele explica que, em vários momentos, o mau funcionamento dos elevadores faz com que seja inviável o embarque de cadeirantes. Barbosa acredita que, se comparado ao período em que usava a cadeira de rodas, atualmente o sistema de elevadores melhorou um pouco, mas não a ponto de atender como deveria as necessidades dos usuários.

Para entender essa diferença entre os dados da EPTC e a realidade vivida pelos deficientes é preciso, antes de mais nada, entender a legislação sobre o assunto.

A Lei nº 10.048, de 8 de novembro de 2000, dá prioridade de atendimento às pessoas com deficiência. O Art. 3 desta lei assegura que “as empresas públicas de transporte e as concessionárias de transporte coletivo reservarão assentos, devidamente identificados, aos idosos, gestantes, lactantes, pessoas portadoras de deficiência e pessoas acompanhadas por crianças de colo”. Regulamentada pelo Decreto nº 5.296, de 2 de dezembro de 2004, a lei representa um avanço social que estabelece a acessibilidade como “utilização, com segurança e autonomia, […] dos dispositivos, sistemas e meios de comunicação e informação”.

O Art. 34º da Lei Estadual nº 13.320 estabelece que “as empresas concessionárias do Sistema Estadual de Transporte Metropolitano de Porto Alegre – RMPA – devem disponibilizar, em seus veículos de transporte coletivo de passageiros, dispositivos que facilitem o acesso à pessoa com deficiência física, obesos, gestantes e idosos, sob a supervisão do órgão estadual competente”.

A Norma Brasileira 14.022, elaborada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) em 2011, “dispõe sobre as especificações de acessibilidade em veículos de características urbanas para transporte coletivo de passageiros”. Já a Norma Brasileira 15.570, do mesmo ano, “apresenta as especificações técnicas para fabricação de veículos de características urbanas para transporte coletivo de passageiros”.

Desde o início da pandemia, 98 ônibus adaptados da Carris, que já estavam em processo de licitação desde 2019, entraram na frota de Porto Alegre. Com isso, a companhia – pública, mas que está em processo de privatização – é responsável por 347 dos 833 veículos que compõem o sistema de transporte público da Capital atualmente. Os outros 486 veículos são divididos entre as empresas privadas que formam os consórcios Viva Sul, Via Leste, MOB e Mais. Em janeiro, o sistema de transporte público de Porto Alegre atendeu a uma média de 410 mil passageiros, durante os dias úteis.

Flávio Tumelero, gerente de planejamento da operação de transporte da EPTC, explica que os 8,5% de ônibus inacessíveis que integram a frota são, em sua maioria, anteriores à 2009. “Esses veículos, por serem antigos, não possuem acessibilidade para os PCDs e é inviável adaptá-los porque, tratando-se de veículos mais antigos, eles não possuem estrutura para implementação dos elevadores”. Ele destaca que antes de 2009 não era obrigatória a adaptação desses veículos.

Tumelero estima que em até um ano e meio, 100% da frota, enfim, será acessível. “Dentro de um ano ou um ano e meio a probabilidade é que esses 100 veículos [que não possuem rampa ou elevador] saiam da frota para que tenhamos toda a frota com acesso a cadeirantes”.

Mas, como relatado por Carol e Barbosa, muitas vezes, mesmo os veículos já adaptados, apresentam problemas. O gerente da EPTC diz que os problemas são mais frequentes em ônibus mais antigos. Segundo ele, os veículos devem passar por vistorias técnicas conforme o tempo de fabricação. Quando os elevadores apresentam problemas, há um prazo de sete dias para que sejam consertados e, quando não há cumprimento do tempo limite, esses mesmos ônibus são retirados de operação.

Cadeirantes relatam rotina em que nem sempre os equipamentos funcionam. Foto: Gustavo Roth/EPTC/PMPA

Tumelero também observa a importância de haver reclamações de usuários em relação aos problemas de funcionamento dos elevadores. “É necessário entrar em contato conosco pelos números 156 ou 118 e registrar a reclamação para a nossa equipe de vistoria e fiscalização ir atrás desses veículos e consertar o problema”, diz o gerente.

A EPTC informa que são feitas cerca de 110 vistorias por semana. Em caso de problemas técnicos, o veículo é encaminhado para a manutenção. Em 2019, a EPTC registrou 110 reclamações a respeito de ônibus com elevadores danificados. Nos dois anos seguintes, quando a pandemia reduziu significativamente o número de pessoas circulando na Capital, houve queda drástica nas notificações do tipo: em 2020, houve 34 reclamações. Em 2021, o número ficou em 33.

Outra dificuldade apontada pelos usuários do transporte público na Capital é o reduzido número de vagas para cadeirantes: apenas uma em cada veículo. “O problema é você esperar um ônibus chegar e, quando ele chega, já há um cadeirante ocupando a vaga especial. Logo, se você for cadeirante não conseguirá pegar o ônibus”, exemplifica Geraldo Barbosa.

Flávio Tumelero diz que aumentar a quantidade de vagas por veículo não é algo provável a curto prazo. “Cada vaga para cadeirante que for adicionada tirará quatro bancos”, afirma. Segundo a EPTC, quando apenas 10% da frota era considerada acessível, certos ônibus tinham até quatro vagas para cadeirantes. “Hoje, diferente daquela época, já que mais de 90% da frota é considerada acessível, não se trabalha com a possibilidade de aumentar as vagas para os usuários de cadeira de rodas”, diz Tumelero. A legislação atual exige apenas uma vaga por veículo.

Para Carol, o número de reclamações considerado baixo pela EPTC [33 em 2021] não reflete a realidade enfrentada pelos cadeirantes. “Muitos PCDs sofrem com mau funcionamento do elevador e acabam não fazendo reclamação justamente porque não sabem como fazer, se podem fazer, nem por onde fazer, por isso o número de queixas não é alto”.

Carolina Santos opina ainda que as dificuldades de acessibilidade se devem à falta de políticas públicas. “A gente [que faz parte dos movimentos] tem que estar sempre batalhando para que isso melhore. Acreditamos sim que podemos fazer a diferença e obter direitos mais igualitários, mas precisamos, acima de tudo, que nossos gritos sejam ouvidos para que mudanças aconteçam. Não depende só de nós, mas somos uma parte muito importante para fazer mudanças”, defende.

Para a ativista, a luta de alguns movimentos como o Inclusivass fez a cidade melhorar, mas ainda é preciso avançar. Ela ressalta que a mobilidade urbana e a acessibilidade são quase sinônimos e não há possibilidade de falar de uma sem mencionar a outra. “A mobilidade urbana deve ser para todas as pessoas.”

Para além do transporte público, Carolina observa que as ruas de Porto Alegre não oferecem as condições adequadas de circulação para deficientes físicos. Para ela, o direito de um cadeirante transitar pela cidade é fundamental para a evolução em sociedade. “O que nós queremos é apenas uma cidade com mais igualdade, em que tanto os cadeirantes quanto os não cadeirantes possam ter uma boa mobilidade e uma boa acessibilidade”, explica.

Fratura é a palavra que Carol utiliza para descrever as ruas da Capital. Ela relata um episódio em que precisou se comunicar com a escola onde seu filho estuda para solicitar rampas de acesso a cadeirantes nas dependências do local. “Não tinha como levá-lo. Mas esse processo de denúncia não bastou”, diz. Em um dia de chuva, relata Carolina, após buscar o filho na escola, havia um buraco pela região que a fez cair e fraturar o fêmur. “Sou eu quem arca com as consequências de uma cidade que ainda não tem a devida estrutura”, ressalta.

*São alunos de Jornalismo da Famecos. A reportagem integra projeto desenvolvido em parceria pelo Editorial J – Laboratório de Jornalismo Convergente do Curso de Jornalismo da Famecos/PUCRS e pelo Sul21 sobre mobilidade urbana em Porto Alegre.


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