
Fernando Maccari Lara (*)
Qualquer um que tenha acompanhado minimamente as discussões sobre a conjuntura econômica brasileira nos últimos anos pôde perceber algo de muito persistente a caracterizar as previsões e cenários que circulam nos grandes meios de comunicação. As expectativas formadas a respeito do ano seguinte têm sido sempre otimistas. Com o passar dos meses elas vão sendo revisadas e adaptadas a uma performance macroeconômica que, invariavelmente, tem se revelado frustrante, tendo em vista os interesses de grande parte da população.
É certo que no que diz respeito especificamente ao ano de 2020 houve, de fato, circunstâncias totalmente impossíveis de antecipar. Na medida, entretanto, que a vacinação avança e que um número cada vez maior de atividades econômicas vão tentando voltar à normalidade, a impressão é que voltamos progressivamente ao cenário anterior à pandemia. A recuperação da atividade econômica e da geração de empregos vai ocorrendo, porém em ritmo mais lento do que o sinalizado pelas previsões e insuficiente para resolver os problemas colocados. Novos problemas não previstos vão surgindo e o quadro positivo induzido pelas expectativas vai sendo, uma vez mais, adiado.
Como se pode explicar a persistência deste estado de coisas? Em primeiro lugar é preciso observar com um pouco mais de atenção como é a própria forma pela qual se disseminam os cenários e projeções sobre a conjuntura econômica. Um instrumento bastante popular neste contexto é o assim chamado “Relatório Focus”. Gerado pelo Banco Central do Brasil a partir de um levantamento junto a instituições que operam no mercado financeiro, o relatório compila as previsões daquelas instituições sobre algumas variáveis de interesse como o crescimento do PIB, a taxa de inflação e a taxa de câmbio. Trata-se, portanto, de uma espécie de resumo das expectativas coletadas. Na página de apresentação do relatório podemos ler textualmente que “as projeções são do mercado, não do BC” (ver https://www.bcb.gov.br/publicacoes/focus).
Trata-se assim de uma situação muito interessante pois o que resulta é um instrumento de sintetização e disseminação de previsões que, sob o ponto de vista prático, acaba revestindo-se de considerável grau de oficialidade, por ser divulgado pelo Banco Central, mas cujo conteúdo propriamente dito não é de responsabilidade da autoridade monetária. No cotidiano dos inúmeros órgãos e instituições públicos e privados que não dispõem de estrutura para produzir as suas próprias previsões, o Relatório Focus acaba servindo como uma espécie de farol para a formação das expectativas para o futuro, e há uma enorme inércia nesta utilização. Não é nenhum absurdo imaginar, por exemplo, que um economista encontrasse grande resistência para utilizar em suas atribuições cenários que ele mesmo tenha formulado, em substituição ao Focus. De onde vieram esses números? Por que não estamos adotando a previsão do Focus, como todo mundo? Parecem frases muito prováveis de serem ouvidas em uma situação como essa.
De outro lado, podemos nos perguntar: qual tem sido o efeito concreto da utilização massiva dessas previsões geradas por agentes do mercado e compiladas pelo Banco Central? Conforme observado acima, de um modo geral esta fonte tem produzido a cada ano um renovado viés de otimismo que aos poucos vai sendo desmanchado. E o mais interessante é que tal desvio sistemático da realidade também não leva a quaisquer questionamentos mais profundos sobre a eficácia do instrumento, tampouco ao desenvolvimento de alternativas. A que se deve esta inércia? De quem se poderia “cobrar” pela sistemática falha do procedimento em antecipar as tendências da economia? Voltamos aqui ao primeiro ponto. Do Banco Central não poderia ser pois, conforme observou-se acima, já na página de apresentação do Relatório Focus a autoridade monetária adverte textualmente que as previsões não são dela e sim dos agentes do mercado. Já as instituições consultadas para elaboração do relatório, se questionadas a respeito, diriam que apenas respondem ao levantamento do Banco Central e que nenhuma responsabilidade têm sobre o uso que dali para a frente é feito sobre aquelas informações.
Voltemos agora a atenção por um momento para estes agentes e instituições privadas que, em seu conjunto, costumam assumir essa figura impessoal e genérica do “mercado”. Poderíamos cogitar que fosse o próprio funcionamento do mercado a penalizar as falhas na construção de cenários, caso o fato de cumprir bem ou mal esta tarefa acarretasse em consequências nos resultados econômicos e financeiros daquelas instituições. Mas esse não parece ser o caso. Não se observa que o padrão de desvios otimistas das expectativas seja acompanhado por qualquer quebradeira ou mesmo por resultados ruins do ponto de vista da rentabilidade das instituições que veiculam. Ao que parece, portanto, ou os números que são fornecidos para a pesquisa do Focus não correspondem a variáveis que sejam efetivamente de interesse para a operação cotidiana daquelas instituições, ou são apenas previsões para divulgação externa, permanecendo os dados efetivamente “quentes” restritos ao consumo interno.
Em síntese, o que temos é uma situação na qual se produzem cenários sistematicamente viesados sobre a conjuntura econômica, porém de responsabilidade absolutamente difusa. Não há aparentemente quaisquer penalidades no contexto do mercado, nem a possibilidade de qualquer cobrança pública a respeito daqueles desvios. Algo tão persistente, entretanto, precisa ter algum fundamento mais objetivo. Qual poderia ser a efetiva função de um viés desta natureza, no contexto econômico e político brasileiro?
Ocorre que, ao mesmo tempo em que fornecem essas previsões, as instituições consultadas também ocupam considerável espaço nos principais meios de comunicação para explicarem qual a agenda econômica que consideram favorável para o país. Federações empresariais e grandes instituições financeiras têm voz ativa no debate público, seja por meio de suas lideranças, seja por meio de seus funcionários. Note-se que as previsões otimistas invariavelmente são aquelas que dizem respeito a um intervalo de tempo suficientemente longo para que determinadas ações e políticas possam ser implementadas. Na medida em que a agenda avança e que os resultados econômicos não apareçam conforme a previsão, sempre é possível justificar ou com fatores exógenos e/ou com uma avaliação de que as mudanças desejadas não foram amplas o bastante. Quem sabe no ano que vem se consiga finalmente o equilíbrio das contas públicas, ou uma reforma estrutural mais profunda…
A chave, portanto, para compreender a verdadeira função das previsões sistematicamente viesadas está na sua associação (nem sempre tão explícita, mas permanentemente subentendida na estrutura da comunicação a respeito desses temas) com a agenda econômica específica que tem sido implementada. O objetivo das previsões do “mercado” não é antecipar o que vai efetivamente ocorrer no futuro, mas sim ajudar a moldá-lo de acordo com interesses específicos. As expectativas otimistas têm funcionado como um poderoso instrumento de neutralização dos conflitos que tornar-se-iam muito mais evidentes caso os resultados econômicos efetivos sempre fossem corretamente antecipados pelas previsões. Elas não devem ser interpretadas, portanto, como prova do fracasso dos economistas que as produzem. Ao contrário, revelam o pleno cumprimento da função que é exercida por um exército de influenciadores e do amplo espaço que a eles é concedido pelos grandes meios de comunicação.
(*) Economista, Doutor em Economia pelo IE/UFRJ)
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