Opinião
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24 de agosto de 2021
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08:39

O subdesenvolvimento como projeto de futuro para o Brasil (por Ricardo Dathein)

Jair Bolsonaro e Eduardo Leite (Foto: Alan Santos/PR)
Jair Bolsonaro e Eduardo Leite (Foto: Alan Santos/PR)

Ricardo Dathein (*)

De acordo com a visão liberal, não existe subdesenvolvimento. Para os economistas liberais, esse não é um conceito científico, e, portanto, não é incorporado à suas visões teóricas. O que existe, para essa concepção, no caso de um país não ser desenvolvido, é apenas um atraso, sendo a situação de país desenvolvido a condição normal. Então, sendo um país ainda não desenvolvido, seria apenas uma questão de tempo esse país se tornar desenvolvido. Ou, caso isso tardar ou não ocorrer, explica-se por alguma forma de rigidez.

A moda teórica atual é explicar que existe algum tipo de rigidez institucional. A solução, portanto, seria adotar políticas e instituições aceitas como liberais, minimizar o tamanho e o papel do Estado, abrir a economia comercial e financeiramente, desestatizar, liberalizar, desregulamentar, garantir incondicionalmente os direitos de propriedade privada etc. O país que adotasse essas práticas rapidamente se tornaria desenvolvido, com o mercado conduzindo o processo.

Como crítica a essa visão, desde muito tempo a CEPAL e Celso Furtado, por exemplo, destacam que o subdesenvolvimento não é uma condição de atraso, mas surge e se move paralelamente ao desenvolvimento. Um país pode, e na maioria das vezes é isso que ocorre, tender a se perpetuar na condição de subdesenvolvimento. As “soluções” liberais explicam, inclusive, a permanência dessa condição. Por exemplo, um país especializado na produção e exportação de commodities agrícolas e/ou minerais, ao abrir sua economia, pode se especializar ainda mais em uma estrutura produtiva que explica e provoca seu subdesenvolvimento.

A solução para alterar essa condição seria, com políticas adequadas, mudar a estrutura produtiva e exportadora, diversificando-a e sofisticando-a, buscando aproximação ao padrão adotado pelos países com maior dinamismo econômico, o que também potenciaria a adoção de políticas sociais igualitaristas. Então, o subdesenvolvimento é uma condição paralela ao desenvolvimento, não uma etapa anterior.

No entanto, hoje, aparentemente, temos no Brasil uma inovação de política econômica, que podemos chamar de projeto de subdesenvolvimento. Essa abordagem ainda não está teorizada, mas talvez deva ser. Ou seja, a ideia de que o subdesenvolvimento não é uma situação anterior ao do desenvolvimento, nem paralela, mas é um futuro planejado e posto em prática.

O Brasil, pode-se entender assim, é um país em estágio intermediário, não desenvolvido, mas que muito já avançou historicamente, distanciando-se de um subdesenvolvimento extremo. Ou seja, há largo espaço para regressão econômica e social.

O que se está fazendo hoje é muito mais que liberalizar a economia, é destruir, na esperança de que, após essa etapa, o mercado construa o “novo”, a utopia liberal. Os liberais pensam que estão apenas flexibilizando a economia, mas o que estão fazendo é desestruturar uma sociedade.

Nesse sentido, o projeto é destruir os legados varguista e da Constituição de 1988, por exemplo. Destruir os sindicatos e as leis trabalhistas. A “Ponte para o futuro” apresentou a ideia. Em síntese, destruir o que existe de social-democracia (também chamada de “comunismo” pela extrema direita). O resultado é a construção de um Estado predatório, pré-Hobbesiano, tomado por interesses particularistas, sem nenhum projeto de construção nacional.

Similarmente, em termos geopolíticos, a ideia é destruir militarmente, como na Líbia, no Iraque, na Síria, no Afeganistão, tentar destruir o Irã, com a esperança de que, a partir daí, o “mercado” (econômico e político) produza uma sociedade “nova”. O resultado tem sido a desestruturação e a regressão das sociedades. A ideia na economia é a mesma, destruir na esperança de que, a partir daí, o mercado crie a utopia da democracia e da economia liberais. Os resultados têm sido desastres históricos.

A tendência, com essas políticas, é que haja um processo de regressão, com aprofundamento das condições estruturais do subdesenvolvimento, tornando mais difícil sair do mesmo, piorando não só as condições sociais e não só as condições conjunturais, mas também as estruturais. Essa desestruturação econômica e social destrói também o ambiente político, provocando o ascenso de projetos neofascistas. Ou seja, o neoliberalismo, tendo em vista o fracasso de sua etapa social-liberal, passa para sua etapa ultraliberal, sempre dobrando suas apostas, nos conduzindo a uma ampliação da regressão.

Mas esse não é o projeto apenas de Bolsonaro (que, como sempre, deixa claras suas intenções ao defender que veio para destruir, que sua especialidade é essa), mas de todas as elites que apoiam seus projetos. Bolsonaro é fruto do neoliberalismo e da regressão econômica de já quatro décadas (iniciada com o fracasso da anterior experiência militar, desde o final dos anos 1970), sem que se tenha conseguido encontrar uma solução, tendo em vista uma burguesia industrial nacional muito fraca e hoje dominada por ideologias e projetos políticos de direita. Nesse longo período, a desindustrialização foi destruindo a classe média assalariada produtiva, que possui agora como sonho se tornar empreendedora, com o acirramento do individualismo.

Além disso, ocorreu o empoderamento, fundamentalmente nos governos do PT, de burocracias antidesenvolvimentistas que se consideram soberanas. Por outro lado, desde os anos 1980, se destruíram as instituições e burocracias pró-desenvolvimento. Desse modo, ampliou-se o desequilíbrio institucional.

Assim, o Estado está tomado pelos interesses rentistas e dos exportadores de commodities, em aliança com um grande grupo de empreendedores inviáveis (a nossa pequena burguesia), mais uma burocracia predatória.

No entanto, parte substancial da população não concorda com isso, por suposto. Além disso, está em contradição com o resto do mundo, onde muitos países adotam hoje políticas com projetos de desenvolvimento, e não de destruição. E, fundamentalmente, esse projeto de subdesenvolvimento tende a gerar instabilidade e estagnação econômica no longo prazo (pois não se cria uma economia baseada na inovação e na produtividade, mas na superexploração do trabalho e dos consumidores e no saque de recursos públicos nas mãos do Estado), o que não é sustentável.

Assim, frente ao atual projeto posto em prática de reconstrução do subdesenvolvimento, resta à parcela discordante da sociedade resistir e construir um futuro menos distópico.

(*) Professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFRGS

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