Opinião
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21 de junho de 2010
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12:12

O Código Florestal e o Relatório Rebelo

Por
Sul 21
sul21@sul21.com.br

Frei Sérgio Antônio Gorgen *

O Código Florestal Brasileiro tem uma base conceitual muito interessante e inteligente, o que lhe dá base de solidez ao mesmo  tempo que lhe dá flexibilidade para resolver, através de atos administrativos, condições concretas e situações excepcionais. Em termos de técnica legislativa, ainda mais em relação a um tema com esta complexidade e amplitude nacional, revela uma sabedoria excepcional. Além do mais, o Código consegue aliar de forma integrada o aspecto social com o ambiental, o produtivo com a preservação. Combina ainda áreas destinadas à conservação com áreas de preservação, isto é, Área de Preservação e Reserva Legal com funções ambientais e possibilidades de intervenção diferentes.

Esta base conceitual está condensada e consubstanciada em seis grandes princípios basilares, cientificamente embasados, todos eles encadeados e com comandos jurídicos concretos e práticos. São verdadeiros pilares de um edifício jurídico, que lhe dá coerência e articula um objetivo, no caso concreto, a preservação das florestas e da vegetação natural como base da produção sustentável e do bem estar social de toda a população do país.  Entendo que esta base conceitual, que estes pilares jurídicos, são inegociáveis. Pode faltar mais um, o da informação e educação ambiental. Mas os seis constantes no Código são imprescindíveis.

É bem verdade que ao longo dos anos ficou um vácuo de regulamentação. Houve tão somente uma aplicação punitiva e enviezada do Código, criando um terrorismo entre os agricultores que gerou uma antipatia em relação a um simulacro no qual colaram, injustamente, a imagem do Código Florestal. Nada mais nefasto à causa ambiental. Neste vácuo e nesta antipatia navegou uma estratégia para justificar a devastação feita e buscar licença jurídica para devastar mais. E pior, em nome de uma noção de desenvolvimento que podia caber nos anos 60 do século XX, mas absurda a dez anos do século XXI. E nesta estratégia destrutiva foi gerado e nasceu o projeto de lei do Deputado Aldo Rebelo, em junho de 2010.

É verdade também que se fazem necessárias várias adaptações, ajustes, modificações e, principalmente, regulamentação nas formas de aplicação do Código. Faltou e falta também informação e apoio aos agricultores para sua implementação prática.

Porém, revogar e matar estes princípios é dar um verdadeiro tiro no pé, comprometer o presente e o futuro da população brasileira em um de seus patrimônios estratégicos mais importantes e mais sagrados: os recursos da natureza como base para a produção e o bem estar de toda a população brasileira.

Vejamos quais são estes conceitos basilares presentes no Código Florestal Brasileiro:

1 – As Florestas e outras formas de vegetação existentes no Brasil SÃO BENS DE INTERESSE COMUM A TODOS OS HABITANTES DO PAÍS, e neles o direito de propriedade não é absoluto e tem que respeitar as leis do meio ambiente ( Art. 1º).

2 – O desrespeito ao meio ambiente é considerado USO NOCIVO (mau) DA PROPRIEDADE ( Art 1º, parágrafo 1º).

3 – Pequena propriedade rural ou posse rural familiar é aquela EXPLORADA PELA FAMÍLIA com mais de 80% da renda vinda de atividades camponesas e que tenha menos de 150 hectares na Amazônia Legal, menos de 50 hectares no Maranhão e menos de 30 hectares no restante do País. ( Art 1º, parágrafo 2º, inciso I).

É importante ressaltar que, no Código Florestal, a pequena propriedade tem um tratamento especial e diferenciado.

4 – ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE – APP:  é a área que deve ser protegida NAS BEIRAS DE RIOS, CÓRREGOS, SANGAS, IGARAPÉS E CORRENTES DE ÁGUA; NASCENTES E OLHOS D’ÁGUA; LAGOAS, LAGOS E RESERVATÓRIOS D’ÁGUA; TOPOS DE MORRO, MONTANHAS E SERRAS; ENCOSTAS COM DECLIVE ACIMA DE 45º; RESTINGAS; BORDAS DE TABULEIROS E CHAPADAS,  COM FUNÇÃO AMBIENTAL DE PRESERVAR A ÁGUA, A PAISAGEM, A BIODIVERSIDADE, A FAUNA (animais), A FLORA (plantas), PROTEGER O SOLO E ASSEGURAR O BEM ESTAR DAS PESSOAS (Art. 1º, parágrafo 2º, inciso II).

As dimensões da APP são as seguintes:

– de 30 (trinta) metros para os cursos d’água de menos de 10 (dez) metros de largura;

– de 50 (cinquenta) metros para os cursos d’água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de largura;

– de 100 (cem) metros para os cursos d’água que tenham de 50 (cinquenta) a 200 (duzentos) metros de largura;

– de 200 (duzentos) metros para os cursos d’água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura;

– de 500 (quinhentos) metros para os cursos d’água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros;

– um raio mínimo de 50 (cinquenta) metros de largura nas nascentes e nos chamados “olhos d’água”.

– em faixa nunca inferior a 100 (cem) metros em projeções horizontais nas bordas dos tabuleiros ou chapadas, a partir da linha de ruptura do relevo (      Art 2º).

5 – RESERVA LEGAL – RL: é a área no INTERIOR DE UMA PROPRIEDADE OU POSSE RURAL, NECESSÁRIA AO USO SUSTENTÁVEL DO RECURSOS NATURAIS, À CONERVAÇÃO E REABILITAÇÃO DA NATUREZA (processos ecológicos), CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE E ABRIGO PARA PLANTAS E ANIMAIS NATIVOS ( Art 1º, parágrafo 2º, inciso III).

As dimensões da Reserva Legal são as seguintes

– 80 % em áreas de floresta na Amazônia Legal;

– 35% nas áreas do cerrado da Amazônia Legal, sendo 20% na propriedade ou posse e 15% podem ser compensados e outra área desde que na mesma microbacia;

– 20% em outras regiões do país, seja de floresta ou campos. (Art 16º, incisos I,II,III e IV).

6 – ATIVIDADES DE INTERESSE SOCIAL: podem ser consideradas atividades de interesse social, para fins de cumprimento do Código Florestal, entre outras, as seguintes atividades:

– Atividades necessárias à proteção da vegetação nativa, tais como: prevenção e combate ao fogo, controle da erosão, proteção de plantio com espécies nativas reconhecidas pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA).

– Atividades de MANEJO AGROFLORESTAL SUSTENTÁVEL PRATICADOS NA PEQUENA PROPRIEDADE OU POSSE RURAL FAMILIAR, desde que não descaracterizem a cobertura vegetal e não prejudiquem a função ambiental da propriedade;

– Planos, obras e projetos definidos em resoluções do CONAMA.

Observemos, então, como ficam estes princípios, no Relatório e Projeto de Lei do Deputado Aldo Rebelo. Os dois primeiros – florestas são patrimônio de todos os brasileiros e o desrespeito ao meio ambiente é uso nocivo da propriedade – simplesmente desapareceram do texto do Deputado Aldo. A base constitucional, que ampara estes dois princípios, simplesmente ruiu. O enfoque nacional, da disponibilidade dos bens naturais para o próprio povo brasileiro, desmanchou-se no ar.

O terceiro, da distinção entre pequena e grande propriedade, também desaparece. Muito ao gosto da proposição do latifúndio que proclama “um só agronegócio”, desconhecendo o papel alimentar, social, ambiental e de ocupação de espaço que a agricultura camponesa familiar cumpre no país. É claro que, neste ponto, cabe uma adaptação do Código, conformando-o com a Lei da Agricultura Familiar que supera a quantificação rígida em hectares. Mas anular a distinção é um equívoco político e social. É, novamente, tratar de forma igual os desiguais.

O quarto, da caracterização das Áreas de Preservação Permanente, ficou tão pequeno e tão diluído, que, na prática, não existe. Veja o caso de pequenos córregos, nos quais, a APP pode ser reduzida a 7,5 metros na proposta Rabelo. Duvido que apareça quem prove que uma margem preservada de apenas 7,5 metros proteja de fato uma barranca de rio. Na primeira enchente, foi-se a margem. Da mesma forma em relação aos topos de morro.

Dispensar a APP em topo de morro é condenar a maioria dos lençóis freáticos regionais – nossas águas subterrâneas – bem como fontes e nascentes, ao desaparecimento futuro, pois são estes topos os verdadeiros pontos de recarga destes lençóis e destas nascentes. É claro que, em muitos locais, o tamanho da APP precisa adaptação, em muitos casos, diminuição de tamanho. Mas destruir o instrumento jurídico e tirar a proteção legal dos rios e águas é mais que um crime ambiental, é a negação de direitos das gerações atuais e futuras, em especial, o acesso à água de qualidade. Não esqueçamos que nossos principais alimentos são oxigênio e água. Ar poluído e falta de água abala as bases da vida.

O quinto princípio tem uma solução emblemática no relatório do deputado Aldo. Ele acaba com a Reserva Legal para a agricultura familiar. É uma demagogia barata que não nos engana. Os Movimentos Sociais do Campo dispensam esta oferta indecente. Não abrimos mão da causa sócio-ambiental. Milhões de hectares poderão ser devastados, de modo especial na Amazônia, e esta conta ficará na contabilidade da Agricultura Familiar. E para os grandes, a Reserva Legal fica tão diluída que na prática será inexpressiva. E o próximo passo da tática engendrada será exigir isonomia: “já que os pequenos não precisam manter Reserva Legal, nós também não precisamos” exigirão os grandes.

O Sexto princípio – atividade de interesse social – permanece formalmente no texto do Dep Aldo, mas como um pinduricalho, um conceito sem função e sem qualquer comando jurídico prático.

Não fica pedra sobre pedra. Quem perde é o meio ambiente e todo o povo brasileiro. Quem ganha? Não consigo ver quem ganhe, a não ser ilusões momentâneas de minorias asfixiadas por interesses meramente imediatistas.

Adaptar, adequar, melhorar, corrigir, qualificar, regulamentar, informar, educar, sim. Destruir, não. A rota escolhida pelo relatório do Dep. Aldo Rebelo é o da destruição, em duplo sentido: do instrumento jurídico e das florestas. Muitas propostas boas, adequadas e aproveitáveis constantes no relatório do Deputado Aldo ficam comprometidas no desenho global no qual vem inserido.

O caminho do povo e de seus representantes de bom senso deve ser o outro. Melhorar sem destruir, tanto a lei como a base material da existência humana.

* Ex-deputado estadual do PT-RS, direção nacional do Movimento dos Pequenos  Agricultores e da Via Campesina Brasil.


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